CONTOS ESCOLHIDOS

OS PÉS

Francisco Deliane



De repente a noite chegara. Ainda parecia cedo. Saulo, que apesar do nome era um bom cristão, apenas não trocara seu nome como o apóstolo fizera ao converter-se, levantou-se, foi á janela afastando a persiana para olhar a rua. De lá entreviu apenas uns pés - parte de um corpo em decúbito ventral - que se sobressaiam espremidos entre uma lixeira e o canto esquerdo da parede da Câmara Municipal daquela cidade interiorana onde vivia desde que nascera. Ignorou momentaneamente o fato.

Voltou para sua mesa onde haveria de pegar seus pertences e sair. Seu cérebro despertou. Sim, havia algo estranho naqueles pés. Ninguém se deitaria por vontade própria em um lugar como aquele, principalmente a dona daqueles pés.

O que havia de tão estranho naqueles pés? Além, é claro, da posição e do local onde se encontravam.
Bizarra sensação penetrou sua alma. Temia a Deus, e sem querer pensou como a cidade estava ficando cada dia mais violenta. Ao fechar a porta de sua sala, situada no segundo piso daquele velho prédio de dois andares, seu pensamento voltou-se para aqueles pés, e num relance percebeu o que não quis ter percebido antes. 

Apavorou-se.

Chamaria a polícia! Iria até lá verificar a inamovibilidade daqueles pés! E se fosse apenas fetiche de alguma prostituta, conforme vira em uma revista, sobre pessoas que só sentem prazer fazendo sexo nos lugares mais esquisitos...? Se era isto, porque não vira também outros pés?

Era seu hábito permanecer na repartição após o término do expediente, não comungava com aquela minoria de exploradores do serviço público que arrumam toda sorte de pretexto para não permanecerem em seus locais de trabalho. Ele trabalhava. Cumpria seu expediente e quase que diariamente extrapolava seu horário, portanto, sabia em seu íntimo que no prédio não se encontrava mais ninguém. Um leve tremor percorreu seu corpo, possivelmente por força de uma descarga de adrenalina.Enquanto se encaminhava ao telefone, aqueles pés não saiam do seu pensamento.

Novamente os viu, percebendo nitidamente sua cor, avaliando mentalmente o seu tamanho e o perfeito estado de conservação dos sapatos que os calçavam. 

Caíra em si. Lera, naquela tarde, um breve trecho de uma história contada em certo “beco do crime” acerca de um criminoso em série que atacava vítimas femininas e, depois de praticar toda sorte de abusos sexuais com as mesmas, ele as vestia e as maquiava, cobrindo a marca do esgorjamento com um xale vermelho, no mesmo tom dos sapatos novos que calçava nas vítimas. 

De relance pensou em sua vida monótona; com toda a violência urbana, nunca presenciara um crime, sabia da existência dos mesmos apenas pelos jornais. Mas aqueles pés pareciam tão jovens, talvez calçassem sapatos de numeração 34 ou 35. Lembrou que, apesar de tal monotonia, na semana vindoura completaria cinquenta anos. Na repartição alguns poucos lhe dariam tapinhas nas costas e votos de parabéns. Nenhum presente. Nada. E a vida continuaria, rotineiramente. 

Pegou o telefone, e o som que ouviu ao tirá-lo do gancho não era o de discar. Estarreceu-se. Pensou porque não havia casado. Meditou sobre a tristeza de morrer sozinho caído em algum beco, como a dona daqueles pés. Enquanto pensava, tentava freneticamente estabelecer a ligação com a polícia. E o som intermitente parecia gritar aos seus ouvidos... 

Ocupado! Ocupado! 

Estranhamente pensou em detalhes de como a dona daqueles pés de sapatos vermelhos novinhos havia sido estuprada e envergonhou-se pela excitação que sentia.Passou a mão nos cabelos, como se com a mão pudesse afastar aqueles pensamento iníquos, pecaminosos, famintos de sexo e perdição. Sempre amara calado, e quando fazia sexo emudecia. Suas emoções sempre foram contidas. 

Era insano, sentir uma ereção naquele momento. Envergonhou-se pensando em sodomia e sexo pecaminoso. Como poderia se excitar diante da morte...? Enlouquecera, o demônio teria vencido! Como? Se sempre fora um homem bom. 

Seus pecados de adolescentes houveram sido perdoados, pois lhe fora dito que o sexo com ovelhas e cabras, enquanto as pastoreava, seu único pecado, era resultante da puberdade solitária. Da insegurança, da explosão dos hormônios.


Na sala, sozinho, murmurou um pensamento, precisamos ter mais segurança. Assustou-se, nunca murmurara uma reclamação, nunca reclamara, era naturalmente um conciliador, mas não podia mais suportar o avanço da criminalidade. Insistiu na ligação para a Polícia. 

Enfim uma voz atendeu. 

Ao ouvir a voz feminina, um tanto sensual, pensou na polícia carioca, e como seria a dona daquela voz, e sentiu pena dela, pois soube que, de acordo com o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro, nos últimos 4 anos entre desaparecidos e mortos foram mais de 24 mil pessoas e que estimava-se uma taxa de elucidação de apenas 5% nos crimes de homicídio.

A voz, num misto de pressa e languidez, o despertou de suas divagações, pondo-o em contato com uma voz de homem que friamente colheu seus dados pessoais e anotou a informação que atabalhoadamente prestara sobre os pés caídos em decúbito ventral no beco, que poderia muito bem passar a se chamar de “beco do crime”. O policial, despedindo-se rispidamente, assegurou que as providências estavam sendo tomadas. Em seguida ouviu o som do telefone sendo desligado. 

Sentado em sua mesa, decidiu esperar. 

Enquanto ouvia ao longe o som da sirene da viatura policial, viu diante de si uma mulher com lábios calorosamente avermelhados por um batom que os definia com perfeição, encoberta apenas pelo xale vermelho que lhe escorria do pescoço sensual, mal escondendo os seios de mamilos intumescidos perfeitamente esculturados acima de um ventre primoroso.
Avidamente o seu olhar inquieto buscou a genitália e... estarrecido viu o seu primeiro hermafrodita. A dualidade. O homem e a mulher em um único ser... as almas gêmeas. 

Alguém bateu a porta... Acordou. 

Meio catatônico atendeu a porta e deparou com o rosto bravo de dois policiais repreendendo-o pelo trote e informando-lhe que: “Quem passa um trote às instituições públicas de segurança comete crime e ainda pode ser acusado de privar uma vítima de socorro. O artigo 340 do Código Penal prevê pena de um a seis meses de prisão ou multa”. 

- Que trote? 

- Indagou perplexo. 

Os policiais responderam: 

Os pés com os sapatos vermelhos novinhos eram apenas pedaços de um manequim da loja em frente que, quebrado, caíra da lixeira onde houvera sido jogado.







CÂNDIDA, A VILA DO SANTO E O PECADO DA CARNE

 Francisco Deliane


O lugar era pequeno. Podia possuir qualquer denominação. "Vila do Santo", por exemplo, mas não direi o nome do santo, para que não se tenha certeza se a historia é verdadeira ou não. 

Bem, a possibilidade de tal lugar se emancipar era coisa muito pouco provável. A vida na roça era fazer meninos para depois, quando crescidos, irem embora atrás de sonhos distintos daquele de viver ali, porque permanecer ali seria continuar do mesmo jeito, não ter acesso à luz elétrica e nem à educação. Nada parecia mudar. Parecia que nada mudaria, nem as pessoas e nem o lugar. 



Portanto, o eleitorado era o mesmo. Os casais eram os mesmos. Os políticos eram os mesmos e, rotineiramente, só apareciam na beirada das eleições. Traziam promessas, plantavam ilusões que se esvaiam até serem replantadas no pleito seguinte, para depois se irem de novo, continuadamente, rotineiramente, indefinidamente. 

As mocinhas viam suas primeiras regras em algum canto da roça, ouvindo o tinir das cigarras. E, em algum destes cantos, tornavam-se mulheres, ouvindo o mesmo 'sino'. A vida era boa, os crimes eram poucos, e assim permaneciam contados e recontados na memória natural do povo, sem manchetes, sem exortações, sem nada, eram apenas crimes. 

No embolorado nevoeiro daslembranças de antigos moradores resistia a história de um crime poucas vezes contada e guardada com o que parecia ser até um certo respeito, certa cortesia, por puro medo de parecer difamação. 

Porém, nas noites de lua, algum antigo morador mais afoito, após algumas doses de cachaça, recordava a história de Cândida. Cândida era moça formosa que nem parecia dali: galega de lábios carnudos, apetitosos mesmo, dona de um busto primoroso, de um rosapálido fazendo até parecer que o sol tinha prazer em tocá-lo, por isso o fazia suavemente para não desmanchar aquele 'rosa-mulher' dos peitos de Cândida. 

Ninguém, mas ninguém mesmo, há de dizer que Cândida, apesar do que sucedeu, não era moça recatada. Pura. Também ninguém, mas ninguém mesmo, há de negar que a carne atrai a carne e, quando a mesma é boa, eleva o desejo. 

Foi assim que aconteceu. Ninguém sabe como, a única coisa que se pode garantir é que efetivamente aconteceu. 

Mais ou menos cinco anos antes do fato, chegou por ali um homem atarracado, de modos grosseiros, dizendo que havia comprado as quatro tarefas de terra diretamente dos filhos de Genebaldo que falecera há pouco mais de mês, embora tais filhos, há mais de quinze anos não o visitassem, como também não visitaram a mãe que morrera seis ou sete anos antes, deixando viúvo o velho Genebaldo que afinal se foi, sozinho e sem ninguém. 

O homem chegou e ficou. 

Pôs-se a trabalhar, plantou milho e feijão. Plantou jerimum e melancia, mas nunca se integrou com o povo da vila que, mesmo sem instrução, era gente muito educada e de boa índole. Hospitaleira. 

Falaram depois do fato, de que tomaram conhecimento ninguém sabe como, que o homem era criminoso, e fora para a Vila do Santo só para se esconder dos parentes de sua vítima que queriam por fina força vingar-se do mesmo. 

Mas só falaram isto depois do fato. Antes ninguém comentava nada. 

Ali mesmo na Vila, junto com Cândida, crescera Antônia, uma moreninha mirrada, que, quando desabrochou, tomou formas de mulher fogosa, ancas largas, parideira, seios fartos, e que logo em seguida foi morar na cidade. 

Ninguém nunca comentou o que acontecera. Antônia voltou sozinha como partiu, pouca coisa mudara, os seios penderam um pouco, mas a bunda parece que não mudara nada, só crescera mais. 

Ao voltar, Antônia passou a cuidar das crianças da vila, num arremedo de alfabetização. Por este trabalho não se pode dizer que Antônia fosse má pessoa. Mas... O destino é assim. Ninguém sabe porquê. 

Conta o povo da Vila que, numa noite de lua, o homem que comprou a terra dos filhos de Genebaldo parece que enlouqueceu. Invadiu a casa de Cândida e abusou daquele busto de pérola, daquele ser divinal, que se debateu... Debateu-se e debaixo de tanta violência morreu. 

O pudor e a vergonha fazem calar o que realmente ocorreu. Somente se fala isso para provar que Cândida era moça honrada que sofreu, sofreu e morreu, morreu porque não cedeu à loucura do desejo do homem que comprou a terra dos filhos de Genebaldo, do homem que enlouqueceu ceifando a vida de Cândida. 

Dor e revolta, choro e lastimação foi o tom intermitente do velório de Cândida. 

Cândida foi sepultada. 

Parece que tudo acabou. 

Não. Não acabou. O homem que comprou a terra dos filhos de Genebaldo em noite posterior ao sepultamento voltou. 

Voltou e com as próprias mãos arrancou o corpo branco de Cândida da terra onde foi plantado e, sobre a lápide congelada, mais uma vez abusou do mesmo. 

Acontece que os parentes do homem assassinado pelo homem que comprou a terra diretamente dos filhos de Genebaldo o descobriram na Vila do Santo exatamente naqueles dias seguintes à morte de Cândida.Encontraram-no entrando no Cemitério e lá executaram a vingança, matando o homem que comprou a terra dos filhos de Genebaldo quando este se encontrava simplesmente nu, absolutamente desarmado por estar bem abraçado ao frio corpo de Cândida. Mataram-no e sumiram. Assim o dizem e ao que parece assim o foi. 

Acontece que, certo tempo depois, nas noites silenciosas, o povo passou a ouvir uns gemidos, uns risos, uns sussurros provavelmente advindos das bandas do túmulo de Cândida. 

Comentou-se. “É alma penada. A morte foi violenta”. 

Todos passaram a evitar andar para aquelas bandas. 

O tempo foi tornando verdade o que parecia crendice, o que parecia fruto do medo. O povo foi se acostumando com a existência dos gemidos. Todos ouviam os cochichos, os sussurros, os gemidos nas noites silenciosas daquele povo aturdido. 

Pronto. Ficou definido. 

É alma penada pedindo oração. 

Missas foram rezadas. 

Mas, vez por outra, o vento trazia os sussurros e os risos do túmulo da perdição.O caminho foi abandonado. 

Caindo a noite, ali ninguém passava até o raiar do dia. 


Acontece que um dia, Tião, um mulato forte, destemido é verdade, mas ficava mais corajoso com as cachaças que tomava, errou o caminho de casa e dormiu no mato que existia próximo do túmulo de Cândida. 

Que mistério! Que horror! 

Tião acordou assustado com os sorrisos e sussurros de Antônia: aquela morena, outrora mirrada, agora fogosa, delirava de prazer. Desvairada e inteiramente nua, chamava o nome de um homem que, depois, souberam se tratar do nome do homem que comprara as terras dos filhos de Genebaldo, e que se casara com Antônia quando esta morava na cidade; assim, por haver matado seu próprio cunhado, ali viera esconder-se com o consenso de Antônia. 

Antônia foi pro hospício. A alma penada - parece - foi para seu lugar, porque ali nunca mais foram ouvidos sussurros, risos, murmúrios, cochichos. 

Ainda assim, tem gente que quando anoitece não anda para aquelas bandas. 


Assim mesmo.

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