sábado, 23 de novembro de 2013

POEMA DOS DONS - JORGE LUIS BORGES


POEMA DOS DONS
 
 
Ninguém rebaixe a lágrima ou censura
Esta declaração da maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu mil livros e uma noite escura.
 
Desta terra de livros fez senhores
A olhos sem luz, que apenas se concedem
Sonhar com bibliotecas e com cores
De insensatos parágrafos que cedem
 
As manhãs ao seu fim. Em vão o dia
Lhes oferta seus livros infinitos,
Árduos como esses árduos manuscritos
Que pereceram em Alexandria.
 
De fome e sede (narra a história grega)
Morre um rei entre fontes e jardins;
Eu erro sem cessar pelos confins
Dessa alta e funda biblioteca cega.
 
Enciclopédias, atlas, o Oriente
E o Ocidente, eras, dinastias,
Símbolos, cosmos e cosmogonias
Brindam os muros, mas inutilmente.
 
Lento nas sombras, a penumbra e o nada
Exploro com o báculo indeciso,
Eu, que me figurava o Paraíso
Como uma biblioteca refinada.
 
Algo, que nomear ninguém se atreva
Com a palavra acaso, arma os eventos;
Outro já recebeu noutros cinzentos
Ocasos os mil livros e esta treva.
 
Ao errar pelas lentas galerias
Chego a sentir com vago horror sagrado
Que sou o outro, o morto, tendo dado
Os mesmos passos pelos mesmos dias.
 
Qual de nós dois escreve este poema
De um eu plural e de uma mesma mente?
Que importa o verbo que me faz presente
Se é uno e indivisível o dilema?
 
Groussac ou Borges, olho este querido
Mundo que se deforma e que se apaga
Em uma pálida poeira vaga
Que se parece ao sonho e ao olvido.




Um poema de Borges, traduzido por Augusto de Campos, no livro QUASE BORGES - 20 Transpoemas e uma entrevista, do selo Musa Rara/Terracota.


JORGE LUIS BORGES (1899-1986) - Argentino, um dos mais prestigiosos escritores da América hispânica. Antes conhecido por suas ficções do que pela poesia, embora se incluam neste gênero seus primeiros livros: Fervor de Buenos Aires, Luna de Enfrente, Cuaderno San Martín. O poema traduzido pertence a El Otro, el Mismo.

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